O relativismo cultural – Uma questão de princípio,
para a Antropologia*
Carmelita Brito de Freitas Felício**
Resumo:
A proposta deste texto é apresentar, em linhas gerais, a filosofia do relativismo cultural, como um princípio fundamental, um “artigo de fé” para a Antropologia. Partindo da consideração de que o conceito de cultura vem se revelando no seio da disciplina como o instrumento mais adequado para combater as explicações naturalizantes dos comportamentos humanos, consideramos em seguida a dupla função do relativismo: i) como um instrumento metodológico a partir do qual, pela via do trabalho de campo, permitiu aos antropólogos penetrar nos sistemas de valores subjacentes às culturas; ii) como um princípio ético que permitiu à Antropologia, de um lado, compreender as diferenças entre as culturas e, de outro, a reconhecer e respeitar a diversidade cultural.
Palavras-chave: cultura, etnocentrismo, relativismo, diversidade, antropologia.
Introdução
Em termos antropológicos, podemos definir a cultura como tendo três sentidos principais:
i – criação da ordem simbólica da lei, isto é, de sistemas de interdições e obrigações, estabelecidos a partir da atribuição de valores a coisas (boas, más, perigosas, sagradas, diabólicas), a humanos e suas relações (diferença sexual e proibição do incesto, virgindade, fertilidade, puro-impuro, virilidade; diferença etária e forma de tratamento dos mais velhos e mais jovens; diferença de autoridade e formas de relação com o poder, etc) e aos acontecimentos (significado da guerra, da peste, da fome, do nascimento e da morte, obrigação de enterrar os mortos, proibição de ver o parto, etc);
ii – criação de uma ordem simbólica da linguagem, do trabalho, do espaço, do tempo, do sagrado e do profano, do visível e do invisível. Os símbolos surgem tanto para representar quanto para interpretar a realidade, dando-lhe sentido pela presença do humano no mundo;
iii – conjunto de práticas, comportamentos, ações e instituições pelas quais os humanos se relacionam entre si com a Natureza e dela se distinguem, agindo sobre ela ou através dela, modificando-a. Este conjunto funda a organização social, sua transformação e sua transmissão de geração a geração.
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*Texto didático elaborado especialmente para discussão em sala de aula, com alunos da Atividade Interdisciplinar: Sociedades Indígenas
**Professora de Antropologia Social no Departamento de História, Geografia, Ciências Sociais e Relações Internacionais e pesquisadora no Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia da UCG.
Em sentido antropológico, não falamos, então, em cultura, no singular, mas em culturas, no plural, pois a lei, os valores, as crenças, as práticas e instituições variam de formação social para formação social. Não obstante esse fato incontestável, há de se considerar uma tendência, uma atitude, um fenômeno fortemente arraigado na história das sociedades, quiçá um dos mais antigos e de alcance universal: o etnocentrismo. Esse fenômeno nos leva a considerar a nossa própria cultura como a medida de todas as outras. Talvez o etnocentrismo seja, dentre os fatos humanos, um daqueles de mais unanimidade, não sendo, pois, exclusivo de uma determinada época nem de uma única sociedade. O etnocentrismo resulta do processo inicial de endoculturação e esse sentimento é conatural a maior parte dos indivíduos, quer o expressem quer não.
Assim, deve-se considerar o etnocentrismo como um fator que opera em favor do ajustamento individual e da integração social, pois é muito importante para o fortalecimento do ego, a identificação com o próprio grupo, aquele ao qual pertencemos, cujos modos são implicitamente aceitos como os melhores. Insistir, pois, sobre as boas qualidades do próprio grupo é a forma mais usual de etnocentrismo entre os povos.
Se o fenômeno do etnocentrismo pode ser encarado como um “fato natural”, como uma visão de mundo onde o nosso próprio grupo é tomado como centro de tudo e todos os outros são pensados e sentidos através das nossas definições do que é a existência, esse fenômeno pode, contudo,
revestir-se de um caráter ativista e colonizador, como bem o demonstram os mais diferentes empreendimentos de conquista e destruição de outros povos. Vale notar, ainda, que o etnocentrismo caminhou de mãos dadas com a ciência. A idéia de uma cultura uniforme, tal como os evolucionistas a defenderam no século XIX, é profundamente discriminatória, uma vez que diferentes sociedades humanas foram classificadas de forma hierárquica, à luz de um pressuposto que colocavam as culturas européias em nítida vantagem em relação às outras.
Contudo, a suposição de que as culturas não-ocidentais são inferiores, é o produto final de uma concepção que só ganha significado se remetida à nossa história intelectual. Não nos lembramos suficientemente de que o conceito de progresso que tanto influi em nosso pensamento é relativamente recente. É praticamente um produto único de nossa cultura. Faz parte da mesma corrente histórica que desenvolveu a tradição científica e inventou a máquina. Contudo, se é verdade que o domínio da máquina proporcionado pela ciência e a tecnologia deu à Europa a última palavra nos debates acerca da superioridade cultural, resta saber até que ponto essa idéia de superioridade cultural resiste à análise antropológica. É o que veremos a seguir.
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